domingo, 22 de setembro de 2013

Saudade

Eram sete da noite, eu olhava com apreensão pelo vidro da janela fechada, à espera do aparecimento dela. O quarto estava arrumado, tudo no seu lugar. Os lençóis da cama de casal bem esticados, a penteadeira organizada, o porta-retrato virado. Tudo no seu lugar. Então resolvi sair da janela e dar uma última olhada no espelho. Tudo certo. Cabelos penteados, pescoço perfumado, relógio no pulso, casaco nas mãos. Eu estava pronto. Voltei para a janela e, como em um passe de mágica, ela já estava ali, a poucos metros da porta da minha casa. Seu corpo pequeno e moreno, dentro de um vestido vermelho, com um sutil rebolado e um olhar incendiário, andando em direção à campainha.
Desci as escadas contando os degraus para não parecer desesperado. Parei. Precisava ver como as crianças estavam, mas a campainha tocou. Desisti de subir até o quarto dos gêmeos e corri até a porta. Abri, e lá estava ela. Linda. Esqueci das crianças. Dei as últimas recomendações à babá e peguei a chave do carro. Segurei com receio as mãos frias e frágeis da belíssima morena que me esperava na porta. Perguntei se podíamos ir, ela fez que sim com a cabeça e comentou que, apesar da ameaça de chuva, a noite estava linda. Eu não lembrava mais o que deveria dizer, há muitos anos não tinha um encontro.  O que faço agora? Porque não tenho um plano? Melhor voltar e ver como meus filhos estão, pensei.  Diante do silêncio constrangedor, ela resolveu sugerir que entrássemos logo no carro.
Resolvi levá-la para comer em um restaurante ali perto e quem sabe durante o jantar eu lembrasse o que fazer.  Não lembrei. Passei todo o tempo a ouvindo falar de sua vida, seus planos e seus afazeres.
Comecei a olhar em volta me sentindo entediado.  Em minha busca por algo interessante que me distraísse enquanto ouvia o monólogo da linda mulher de vermelho à minha frente, vi um casal sentado mais ao fundo, em uma mesa perto da parede.  Eles pareciam estar se divertindo muito. Gargalhavam alto enquanto conversavam. Às vezes paravam, olhavam-se profundamente e voltavam a conversar. Pareciam ter se esquecido da comida, tamanho era o entusiasmo com a conversa.  Lembraram-me dois jovens que há muito tempo eu não via. Ambos aparentavam estar no auge de seus vinte anos, com seus sorrisos marotos, seus cortes modernos, suas calças jeans...
De repente, me lembrei do que deveria fazer e falar em um encontro. Eu sempre soube o que fazer. Sempre foi fácil pra mim. Porque não era mais? Mesmo lembrando, não senti vontade de fazer e nem falar nada. Só queria continuar ali, olhando o casal feliz que me era tão familiar.
Subi um pouco o olhar e reparei em um detalhe roxo pintado na parede, bem ao lado da janela acima da mesa do casal que eu observava de modo sorrateiro. O desenho parecia ter sido feito com um marca-texto e tinha um formato facilmente reconhecível. Será? Não poderia ser. Depois de cinco anos, aquele rabisco pequeno, em forma de coração, continuava ali?
Nesse momento minha mente começou a bombardear à minha frente lembranças de alguns anos atrás, quando, em uma noite quente e chuvosa, dois jovens sentados naquela mesma mesa, ao pé daquela mesma janela, conversavam e se olhavam profundamente, enquanto a comida esfriava e o tempo passava mais rápido. Éramos eu e ela novamente, e ela estava radiante, como na foto do porta-retrato azulado de cima da penteadeira. Eu não poderia ter me esquecido daquela noite. Algo dentro de mim se aqueceu. Senti uma imensa vontade de sorrir quando me lembrei do momento em que, no meio da conversa, resolvi rabiscar a parede do restaurante para que nunca esquecêssemos aquela data. Um jovem vândalo, diriam. Mas aquele momento se tornou único com aquele ato. E aquela jovem mulher que estava ao meu lado, rindo do meu vandalismo, também havia se tornado única com o tempo.
Estava eu perdido nessas lembranças quando percebi que a linda moça de vermelho tinha parado de falar e me olhava de um jeito decepcionado. Mais uma vez eu não sabia o que dizer. Será que ela percebeu pelo meu olhar que eu estava pensando em outra? Eu esperava que não. Ela apenas sugeriu que pedíssemos a conta. Eu concordei. Na saída do restaurante dei uma última olhada no coração feito de marca-texto. E assumo que eu ainda não estava preparado para aquilo.
Voltamos ao carro e a levei até sua casa. Ao chegar a casa, subi com cuidado as escadas, para não fazer barulho e acordar os gêmeos. Abri lentamente a porta do quarto e lá estavam eles, dormindo. Eram dois meninos tão grandes, nem pareciam ter apenas quatro anos de vida. Dei-lhes um beijo na testa e pensei em como eram fortes por conseguirem aguentar a saudade dela. Levantei-me ainda olhando para eles. Depois fui até a porta e a fechei lentamente.
Segui até o meu quarto e, quando entrei, olhei para cima da penteadeira. Lá estava ele, virado para a parede como se estivesse de castigo. Peguei-o com cuidado para não quebrá-lo e o abracei. O aperto no meu peito intensificou-se. Deitei na cama sem nem ao menos tirar os sapatos e fiquei ali, naquela posição, durante muito tempo, olhando para a foto dela no pequeno porta-retrato azulado.

- Ana Silva.

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