quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Mudança

Olho, mas não vejo, algo aconteceu, está tudo diferente, as cinzas estão no ar e um passado volta à tona a partir da falta de visibilidade humana. Quatro anos, e vidas transformadas, esse foi o saldo de uma insanidade positiva, aquela que deixou bons frutos.
E agora? Não tem pra onde o olhar fugir, mas nem estava fugindo, um novo momento já havia surgido, e ele estava em novos horizontes. Mas estar em outro momento não quer dizer que a importância de certas passagens será apagada ou substituída por outras, cada uma lá, com seu grau de importância, mesmo que seja só para uma pessoa.
No fundo, pode ser percebido que aquela busca nem foi tão em vão assim, toda angústia, sofrimento, fez e sempre faz você aprender sobre algo, e ser diferente a partir desses aprendizados, contudo, essa é a grande graça da vida, aprender, aprender e aprender.
Um assobio, uma corrida, e uma jogada de chave às 6, nada será como antes, passou, e o que fica é uma lembrança dos tempos iniciais de quando tudo não se passava de uma eterna brincadeira.
Aliás, é assim que pode ser visto tudo isso, uma brincadeira que só um joga, participa e se esforça, no final, olha pra trás e vê que sempre esteve sozinho, e que os acontecimentos e sonhos eram efeitos de uma imaginação livre e sempre aberta que buscava a realização do impossível.
O tempo passou, o mundo mudou, a felicidade chegou e novos nomes surgiram nas vidas dessas pessoas, mas a marca de uma forte história, não se passa de uma tarde ensolarada de agosto de 2008. A sempre e eterna busca pelo ver, tocar, sentir e amar, são fatores fundamentais para a longevidade de uma história simples, que poderia durar horas, ou dias.
Desde apelidos até a verdadeira identidade, uma conexão lenta e uma descoberta mais aprofundada sobre uma pessoa desconhecida, e desde então, vários personagens entram para a história, e o desconhecido vira coisa passada. Tudo tem um sentido, uma razão de ser.
Histórias compartilhadas entre amigos, família, e suas verdades são divulgadas de uma de certa forma que não existem mais segredos, e todos já possuem uma visão critica sobre os acontecidos e pessoas que revelam que nada pode mudar, sempre será desse jeito.
Escritos, guardados, e palavras trocadas já ficaram velhas, e o assunto foi retomado. Certos acontecimentos têm esse poder, de ressurgir algo de uma maneira, pois mexeu na ferida, já fechada, mas mexeu... E no fim, percebe-se que nada estava sozinho, tudo era um grande contexto, mas agora tirando uma peça daquela grande engrenagem muda tudo, e mais um paradigma se quebra, e de repente, olho, mas não vejo, algo aconteceu, está tudo diferente.

- Rafael Gomes.

Pretérito imperfeito

Você foi a festa que eu cheguei atrasada e tive que sair antes do final. Você foi aquela música preferida que, trocando de rádio, só consegui ouvir a metade. Você foi o gole que se dá pro santo, brinde de amostra grátis, brinquedo emprestado. Você foi o evento esperado que, prestes a acontecer, foi cancelado. Foi o faltar da luz no último capítulo da novela. Foi aquela peça da vitrine que nunca tinha o meu tamanho.
Você foi o enviar da mensagem que eu não terminei de digitar, no erro, na pressa, no desespero.
Foi maré baixa. Foi chuva na viagem de férias.
Você foi os ingressos esgotados no último dia de apresentação do espetáculo (mas também fechou as cortinas antes mesmo dele começar). Foi versão sertaneja de jukebox pra sua música preferida do Metallica. Você foi o chute incerto com múltiplas escolhas, desvio-padrão. Feriado no domingo, dublê em filme de ação.
Você foi a entrada no segundo tempo da partida (e deu o apito final). Você foi criança rebelde no Jogo da Vida (e derrubou os pinos fechando o tabuleiro). Foi equação com resultado impossível. Você foi o entregar os pontos próximo à linha de chegada.
Você
(se)
foi.

- Débora Fonseca.

Espelho

Admirava por ventura meu rosto envolto por moldura.
Seria mel azedo o que eu provara? Seria eu criatura boa e educada?
Voltei-me às cortinas que envolviam as janelas, correria se pudesse.
Meu reflexo me envolvia como um lobo às suas ovelhas,
Seria eu juiz de minhas próprias ações? Seria eu verme traiçoeiro?
Caberia a virtude de meu olhar, julgar a mim mesmo e aos demais?
Seria pobre se o fizesse, seria rico se o mantivesse.
Regulamento então o seguinte sacrifício, serei o nobre!
Perderei meu vício, de me manter prisioneiro, forasteiro.

- Leonardo Medeiros.

Ensaio

A gente se acostuma com os costumes. Acostuma a levantar, ir ao banheiro, escovar os dentes e abrir as janelas para um novo dia tão igual. E, de repente, num repente desses que a vida costuma nos dar, as coisas saem dos eixos, como se o tempo se encarregasse de mudar a mobília da nossa casa de lugar sem a nossa permissão; como aquele caderno antigo que há anos ficava no mesmo lugar e que a nova empregada se achou no direito de esconder em um outro canto. Um ultraje essa vida de mudanças: as pessoas se vão assim, no vento, e uma dessas brisas frias de primavera te tirou para dançar.
Desde então, não durmo. Não ouço Engenheiros do Hawaii. Não levanto a tábua da privada e nem lavo as mãos. Não vejo Two and a Half man. Passei a odiar os clipes da MTV. Não leio a parte de economia do jornal. Nem compro mais jornal. Não tomo mais suco no jantar. Não aponto as estrelas no céu, entre o vão da cortina cor de vinho. Não vou ao cinema. Não escrevo poemas enquanto deveria estar projetando casas. Não canto no chuveiro. Não uso aquele perfume que tem cheiro de chuva. Ah, você nem sabe o quanto tem chovido aqui dentro de mim, o quanto eu tento secar a cada segundo. Ao lado, vejo uma grande inundação, um dilúvio, uma grande tempestade de vida nova. E que porra de vida é essa? – Eu to bem – decorei essa frase. Nunca a usei tanto. Nunca soube de tanta gente se importando comigo, feito moscas por cima dos restos de comida na mesa. Melhor dizendo, dos farelos no chão, pisoteados. – Eu to bem – e por dentro uma retórica parecia querer se externar; tomava um soco na cara e voltava a dormir dentro de mim. Maldita sinceridade, quando, na verdade, eu precisava parecer estar bem.
Ensaiei o sorriso no espelho. O discurso de bem resolvido. Fiz a barba.
Desde então, me tornei um homem de um conto qualquer, contado por qualquer escritora jovem, cheia de ideias. Um homem ator, uma vida de mentira. Uma falsa comédia. Trágica.
Ela tinha tinta vermelha na ponta dos cabelos. Era uma ex revolucionária, que encareteou com o tempo. Já não fumava ou bebia. Já não ria das minhas histórias da época de conselho estudantil. As coisas foram perdendo a cor, e eu corria atrás delas com um pincel enorme. Mas a tinta era preta. Eu estava estragando tudo.
Desde então, não gosto das cores. Saio todos os dias vestindo cáqui ou bege e, não sei bem o motivo, isso faz eu me sentir um pouco mais da multidão. Um camaleão no meio da sujeira, da correria, da massa infértil, dos sinais vermelhos e das buzinas; de toda a falta de amor das ruas. Já não acredito em amor. Não acredito em mim, nem nela. Só tenho acreditado nas mentiras que ensaiei no espelho – Eu to bem – ninguém discordava.
Ando escrevendo cartas e fazendo menos projetos de casas. Endereço-te todas elas, só estou esperando você vir buscá-las na minha gaveta de cabeceira. Todas tem nosso amor descrito. Meu ódio descrito. Meu arrependimento gritando. Meus ensaios decorados. Minha voz te clamando pra voltar. A senha do meu cartão de crédito. O número dos teus sapatos. Tua mexa de cabelo vermelho, desbotada. Tuas pulseiras douradas. Tua paciência que eu desperdicei. Ah, como eu queria saber teu endereço, teu número de celular. Queria saber se você está bem, se tem tomado tuas pílulas de açúcar, se ainda tem medo de andar de metrô. Queria saber se sua voz ainda falha de manhã, se você ainda espirra ao olhar para o sol. Daria tudo para saber se você ainda quer ter filhos. Queria te dizer que eles sempre estiveram nos meus planos. Você não sabe, mas acabo de fumar meu último cigarro e perdi as contas de quantas vezes respirei. Andei contando as respirações, tive um pouco de dificuldade no começo, mas não resolvi parar por isso. Resolvi que vou viver, por mais que isso signifique te ver em cada esquina, te procurar nas curvas de outras mulheres. Te ver comentando sobre economia enquanto lê o jornal. Te ver ligando a TV nos clipes da MTV apenas para zombar deles. De te lembrar rindo de Two and a Half man e de me implorar para irmos ao cinema. De fazer o melhor suco no jantar. De te ajudar a escolher as estrelas mais bonitas. De te ouvir xingar ao ver a tábua da privada abaixada. De te ouvir rindo de mim enquanto eu cantava no chuveiro. Lembrar-te da sua reação ao sentir meu perfume, dizendo sempre que ele te lembrava o cheiro da chuva. Vou catar estas migalhas com o tempo. Vou desatar este nó entre passado e presente. Mas, por que diabos eu só consigo lembrar de mim nas coisas que havia você? Por enquanto o peito vai e volta. Se vai a fumaça da minha última tragada, no meu último cigarro.
É – eu to bem.

- Mariana Stofel.

Amores urbanos

Estava ali, dentro daquele quarto calado e caótico, eu, calado e caótico, vendo a noite ruir. Sentei-me na beira da cama como se meus pés não tocassem o chão, mas sim as águas mansas de um mar construído por mim, era noite de lua nova e não havia sequer um maço de cigarros no meu criado mudo.
Ela iria embora depois de longos anos de espera. E ela não era a noite.
Liguei o rádio e esperei que tocasse algum blues que não me lembrasse quem fui. Eu que corri por tanto tempo em busca de me livrar de mim mesmo, como se a minha velocidade corporal deixasse minha alma para trás. E quantas vezes eu nem quis ter alma? E quantas vezes como essa agora eu me pergunto: Quando voltará a minha alma, se é que tenho uma?
São duas da manhã, acabo de ver o relógio. A cidade está toda em movimentos rotativos – resultado da vodka que ando bebendo – na verdade os amores urbanos estão todos lá fora se amando lentamente antes que se acabem, porque eles acabam e não é justo que eles não saibam disso.
Eu olhava pela janela e quando ouvi um passo estranho e uma respiração ofegante perto dos meus ombros. Ela não era a noite. Ela tinha um cheiro característico e único, que eu sentiria aqui ou em Roma, aqui ou no inferno. Pegou duas malas cheias de mágoas e mentiras e me fez carregar até a porta, sem olhar em meu rosto. Ao tocar em seu antebraço, senti sua repulsa e o seu cheiro veio parar dentro de mim como a fumaça do meu cigarro. Ela me matava aos poucos e nem sabia.
Então eu levei-a até o elevador e esperei aqueles dois minutos mais longos que se pode haver. Falei – espero que faça boa viagem – ouvi apenasjá uma respiração decepcionada. Eu não possuía vocabulário algum para descrever esse momento. Vi um táxi convencional amarelo levar meu sonho para qualquer hotel dessa cidade.
Agora são quatro da manhã. Ray Charles toca uma canção que eu não me lembro o nome, mas que me lembra você em cada nota. Lá fora amores urbanos começam, o mundo gira circulando e circulando como o relógio da minha parede tão cansado de me ver vigiá-lo, como se o girar dos ponteiros pudesse se inverter e fazer todo o tempo voltar, e te fizesse voltar junto com manhã passada, mas ainda é noite! E ela não era a noite.
Debrucei novamente na janela – já estava cansado de me manter sentado e inerte – fui ver estrelas. Olhei-as calmamente e por um momento perdi-me na noite, como um anjo. Ora, eu estava longe de ser um anjo, mas foi assim que eu me senti. Só não pude voar por pouco, de fato tive medo da altura da minha janela e o medo sempre foi uma merda na minha vida. Voltando às estrelas... Bom, lá estavam elas, sós e unidas como um bando de ovelhas guiadas por um pastor. As estrelas estavam lá guiadas por, sei lá... Deus! Pela primeira vez eu senti a sua paz dentro da minha veia aorta e tudo aquilo repassava ao meu corpo um desejo de não mais sofrer.
Eram cinco da manhã, e nessa estação o sol aparece mais cedo. Mas ainda era noite e ela não era a noite. Então eu não resisti a mais um gole e deitei-me com as janelas abertas para observar um vento matinal que já podia levar as minhas cortinas brancas até a outra parede do quarto.
Desliguei o rádio e, de repente, senti uma desesperada vontade de olhar a janela novamente.
Lá estava ele – grande e poderoso sol – e eu, tão branco, não o notava mais por tamanho egocentrismo, o meu brilho me bastava e meu peso me ancorou todo esse tempo, mas pela primeira vez depois dessas horas que ela se foi eu me senti livre, leve.
Descobri ao olhar o céu que a noite se vai como ela, mas que a vida é sentida em cada raio de sol e, quando se vive, no mais verdadeiro e amplo sentido que esse verbo possa ter, a noite vem para trazer o descanso, e quem sabe... Me trará ela! Esse meu pensamento coloriu em minha mente a idéia de que a vida é continuidade, e eu já não tinha mais fígado ou ilusões para lapidar esses “pra sempres” que nunca chegam.
Mas, de fato consumado, perante qualquer pieguice de infinito, ela sempre será minha noite, embora já não mais em carinhos, apenas em sonhos.

- Mariana Stofel.

As rosas não dormem

Antes de todo amanhecer eu me encontro, vestida de estrelas, com os olhos fechados ao ponto de que tudo posso ver, até eu mesma. Dos sonhos partem toda a parte do horizonte que eu caço, cato, busco como se eu pudesse tocá-lo com as mãos. A verdade é que não há nada mais terrível que o horizonte, porque quanto mais você se aproxima, mais ele se afasta. É duro ser um horizonte pra si mesma.
Desta forma eu encontro, numa série de palavras, o meu contraponto. Ao mesmo tempo em que eu escrevo tudo com essas mãos ainda tão frias, eu tento apagar coisas tão marcadas nas linhas que se fixaram ao ponto de serem intocadas, ocupando espaço demais em meio às outras palavras. É um negrito tão gritante, que me tortura em saber que um dia grifei essas palavras com tanta vontade de que elas fossem eternizadas.
Então você se encontra numa noite como essas procurando sinônimos para continuar viva. Você olha em cada esquina desses becos sem saída que são seus dias e se esquiva dos fatos como um morcego da luz. Não há descanso, meu bem, mas às vezes os dias ninam as noites.
Como se não bastasse a insônia, ainda preciso montar esquemas de esquecimento e arquitetá-los para serem infalíveis. É uma luta diária, é tão duro como ver brotar em você um espinho, perfurando sua carne, mas te fazendo um pouco menos inofensiva ao toque dos outros. Então eu me encontro segura ao ponto de não mais esperar que as dores e os sonhos resolvam entrar em comum acordo. Dessa forma eu descanso, em alerta, eu nunca durmo dentro de mim, não é seguro. Há um mar profundo nos meus sentidos, há uma areia movediça nas tuas defesas, haverá sempre uma linha entre nós que, ao ponto que nos separa, só nos une. Só não espero nenhum toque porque eu sei tanto sobre medos e jogos que sempre dou um jeito de me esquivar. É duro aceitar que você afasta as coisas. É inútil saber procurar sonhos dentro de outras pessoas, porque eles se vingam de nós. Não há vingança pior que a de um sonho não realizado.
Por ora, o importante é não esperar, planejar, arquitetar. O mais bonito dos sonhos é o fato de eles serem involuntários e espontâneos. O mais eterno de um sonho é o fato dele acabar, é a memória de quando se acorda e se lembra intactamente daquilo que só o travesseiro pode presenciar. O duro dos sonhos é que se precisa dormir para encontrá-los.
Ah, e esse café me dá insônia.

- Mariana Stofel.

Invisível

O teu eu é como o meu, mas sem voz. Olhos que brilham no escuro de uma imaginação abarrotada de lembranças. Foi um grande prazer e sempre será, meu amigo.
O teu sorriso é como o meu, mas congelado. Vive naquela tela estática, irreal e nada lúcida. Você se tornou parte dessa loucura incompleta, desse jogo sem peças, mas com xeque-mate cada vez mais próximo. Eu não sei muito bem em que momento de toda essa história você derrubou a minha pose de rainha com seu cavalo bem-humorado e gentil.
Eu não posso te enxergar, mas te vejo. Que irreal desejo é esse que me assombra? Quando meus olhos se fecham e aquela única brecha de luz se acende, eu sei, é você em qualquer parte do mundo, em qualquer cama que eu não sei a temperatura, com qualquer roupa que eu não sei a cor. É você em cada mania que eu desconheço, em cada rotina que eu me enfio como uma íntima estranha.
Eu não posso te escutar, mas te ouço. E que voz é essa que ecoa de um passado já tão distante? As palavras que você diz sorriem para o meu tímido silêncio. A gente encontrou esse modo torto de se entender pelas mãos. E sorrir com as mãos vai ser sempre a nossa maior voz.
Eu amo as suas visitas, mas talvez não devesse abrir as portas da minha casa dessa forma e te convidar para entrar, para visitar os meus armários e te servir as sobras de uma refeição já feita. Você merecia não menos que um jantar à luz de velas, com um bom abraço de sobremesa. O que eu posso te oferecer é tão pouco perto do que eu possuo guardado no fundo do meu mais íntimo pensamento.
Redescobri o tom, mas não redesenhei as metas. Você é feito desenho em nuvem: talvez seja só coisa-da-minha-cabeça-ociosa. A verdade é que, desde você, sou eu de novo. Com aquele perigoso brilho latente nos olhos; farol alto demais nessa estrada que já parecia tão iluminada. O problema é que, desde você, já não sou mais eu. Não aquela pessoa centrada e objetiva. Ando cheia de subjetividades tenebrosas, ilegais. Sou risco o tempo inteiro, inconstância. Ora certeza invicta e eterna, ora efemeridade tentadora.

- Mariana Stofel.


Brisa

A cabeça estava voltada pro píer e eu sabia exatamente o horizonte que eu queria enxergar. Sabe quando você sabe o que quer enxergar e o que realmente enxerga? Eu era completamente inventiva. Tinha uma coisa meio uma artista plástica, cênica, dramática; tudo era montado, formado, adaptado. Talvez eu fosse apenas um tanto louca.
Por mais que eu cavasse e perfurasse todas as barreiras que me cobriam, eu sabia exatamente no que iria esbarrar: a parte que me doía, sempre no mesmo lugar, um pouco antes da base, antes mesmo da parte mais profunda que eu tivesse. Era aquela camada superficial, sempre cruelmente perfurada por desavisados que não sabiam o quão sensível eu podia ser por trás de toda essa loucura inventiva. E eu criava camadas cada vez mais grossas, com grades, alarmes que tocavam enlouquecidos quando um desavisado resolvia se aproximar. Ah, meus amigos, vocês não sabem como é estar soterrado por várias camadas e continuar vivo. E é por isso que eu não me canso de cavar, escavar e fazer buracos.
Posso dizer que viver presa nessa película invisível me tornou forte. Que a sorte me tornou distraída a ponto de não me importar com ela. Que o vento me mostrou que a leveza das coisas encontra-se na parte pesada que se deixa libertar. Que os dias me mostraram que as dores são remédios cheios de contra-indicações. Que há sempre cura para o coração que bate por uma causa. Que não há tempo que explique como os sentimentos se libertam todos loucos procurando seus respectivos donos até descobrirem que nunca existirão donos. Que os sentidos, às vezes, falam mais bonito que as palavras dos tão valorizados sentimentos. Que o mundo é realmente um moinho e que toda esta lama um dia te suja de alguma forma, não adiantando tentar vestir branco o tempo inteiro.
E eu fico aqui sentada com todos esses pensamentos e o mundo trapaceando lá fora antes que eu possa levantar a minha voz e contar pra todos esses mesmos pensamentos, que passam aqui dentro e que não se calam.
E o que dizer a vocês enquanto essas questões não se resolvem? Que eu vou levando do jeito que posso, do jeito que sei. Que as estações me trouxeram um pouco de verão, mas que me ensinaram a ser inverno. Que eu brinco o tempo todo porque dessa forma eu memorizo, eu só guardo os sorrisos que arranquei. Que as flores e as estrelas são as coisas mais lindas que eu vejo e que eu me identifico com os pingos da chuva. Que eu me apaixono e trapaceio, que eu erro e peço arrego, que eu sei pedir licença, mas não lido bem com pontos finais. Sabe, meus caros, o mais duro foi ter nascido coração demais. É foda ter que bater na própria porta todos os dias pedindo pra sair um pouco.
E não há nada que me cale, a não ser a minha própria voz dita quando não se explicam as próprias palavras, elas são infundadas demais para todos os sentidos que busco. Vivo na eterna busca de me perder lentamente, o meu desejo é deixar de ser aos poucos. Afinal, sou tão leve que não me permito parar... Vento todos os dias.

- Mariana Stofel.

O mundo de Maria

O mundo de Maria

Maria tinha sete anos e muitos sonhos na cabeça. Um dia, estava deitada em sua cama de madeira pensando em todos os lugares que desejava conhecer. Ela não sabia muito sobre os lugares, mas sabia que existiam muitos locais desconhecidos e prontos para serem visitados. A sonhadora Maria olhou então em volta, reparou em cada detalhe de seu quarto. Era pequeno, mas bonito. Tinha alguns brinquedos de madeira, construídos por seu pai e algumas bonecas de pano, costuradas e pintadas cuidadosamente por sua mãe. As bonecas repousavam sentadinhas em prateleiras, enquanto os outros brinquedos encontravam-se espalhados pelo chão. Depois de reparar na beleza de seu canto, Maria passou a imaginar quantos outros lugares bonitos a aguardavam no mundo. Resolveu então, naquele momento, viajar. Levantou em um pulo, arrumou a cama, pegou sua mochila azul com bolinhas brancas e enfiou dentro dela um lençol, sua boneca preferida, uma bússola de brinquedo e um bombom, para o caso de sentir fome. Lembrou de que precisava levar seu relógio digital, foi então até o criado mudo e o pegou. Olhos as horas, eram seis da tarde. Colocou o relógio dentro da mochila e foi até o banheiro.
  Lá, penteou os cabelos, colocou um short jeans, uma camiseta e um pouco de perfume. Calçou seus chinelos e procurou uma folha de papel e uma caneta para escrever um bilhete para seus pais. No bilhete ela escreveu as seguintes frases:
“Queridos papai e mamãe, fui ver o mundo.
Eu amo vocês.  Maria.”
Pegou o papel, dobrou-o e o colocou em cima da cama. Depois colocou a mochila nas costas e desceu as escadas. No meio da escada ouviu os passos de sua mãe e sua voz lá embaixo, vindo para perto da escada. Subiu correndo. Parou um pouco ofegante e pensou: “Ela não pode me ver saindo.” Escondeu-se embaixo da cama e ficou lá durante alguns minutos. Pegou o relógio digital e olhou a hora. Eram seis e vinte. Resolveu aguardar até seis e meia.
Enquanto aguardava, ficou imaginando os lugares que ia conhecer e as aventuras que ia viver quando saísse de casa. Imaginou conhecer castelos e florestas, sítios e montanhas com cavernas onde ela acenderia uma fogueira e se abrigaria. Por um momento pensou em levar fósforos consigo, mas não conseguiria pegá-los na prateleira alta da cozinha. Imaginou animais ferozes e desconhecidos, que conseguiria enfrentar com os acessórios que levava na mochila.
Olhou novamente para o relógio e viu que já eram seis e meia. Saiu de debaixo da cama e foi até o topo da escada. Olhou de lá e não viu ninguém. Ficou observando mais um pouco.
Enquanto isso a mãe de Maria, Dona Josefa, que já estava lá em cima, foi pegar a roupa suja no quarto da menina e deparou-se com o bilhete escrito por Maria. Leu e olhou em volta. Por um momento preocupou-se. Foi andando em direção à escada já aflita e lá estava a pequena Maria, de mochila nas costas e com os cabelos penteados, pronta para conhecer o mundo. Dona Josefa então deu um sorriso e a esperou descer a escada, se sentindo orgulhosa por Maria ter escrito o bilhete tão corretamente e por ser tão destemida. Achava a filha muito esperta para uma menina de sete anos.
Enquanto sua mãe a olhava orgulhosa às suas costas, Maria desceu as escadas correndo, abriu a porta com dificuldade e parou no quintal com as mãos nos joelhos e o coração acelerado. Olhou para trás e viu que a porta estava aberta, voltou correndo para fechá-la e o fez lentamente para não fazer barulho. Quando finalmente conseguiu fecha-lá, voltou a olhar para o quintal, o portão para a rua estava longe. O céu estava ficando escuro, Maria imaginou que daqui a pouco os ratos começariam a aparecer no quintal.
Assim que saiu de casa, a pequena aventureira sentiu um arrepio frio nos bracinhos desnudos e lamentou-se por não ter pegado um casaco. Já era tarde demais para voltar. Nesse momento, ouviu um barulho e viu uma luz forte vinda da rua. Era o carro de seu pai. Maria apavorou-se e correu para se esconder atrás de uma árvore do quintal. Enquanto isso, Dona Josefa foi para a cozinha e continuou a preparar o jantar.
O pai de Maria, um homem alto e muito parecido com ela, estacionou o carro e saiu de dentro dele carregando pesadas ferramentas de carpintaria. Foi andando vagarosamente até a porta, o que deixou a pequena aventureira irritada, já que atrasaria sua fuga.
Assim que o marido entrou em casa, Dona Josefa adiantou-se a contar sobre o bilhete deixado pela filha. “Carlos, olhe só o que essa menina inventou agora...”
Depois de ouvir a história, Seu Carlos riu e resolveu apostar quanto tempo Maria levaria para voltar para dentro de casa.
Enquanto apostavam lá dentro, Maria finalmente saiu de trás da árvore e começou a bolar seu plano para chegar até portão. Olhou para seu relógio e já eram seis e quarenta, o quintal já estava escuro, pois era horário de verão. Maria ouviu um barulho e imaginou ser um rato enorme vindo atrás dela. Entrou em pânico. Começou a correr e acabou voltando para perto da porta. Então parou e pensou: “não posso desistir agora.” Olhou para todos os lados e nem sinal do bicho gigante. O quintal de sua casa era enorme e cheio de vasos de plantas, tinha algumas madeiras e ferros-velhos jogados em um canto escuro, perto do portão da rua. Maria tinha muito medo daquele canto. Sua mãe dizia que havia muitos ratos ali. Como ela chegaria até o portão sem ser atacada pelos ratos? A pequenina foi então até o canto onde estavam os pedaços de madeira e tentou pegar o menor deles, porém não aguentou seu peso e desistiu. Seria sua arma caso aparecesse um rato. Teria que pensar em outra coisa agora. Lembrou do lençol que estava dentro da sua mochilinha e pensou em se cobrir com ele, assim os ratos pensariam que ela era um fantasma e ficariam com medo dela. Tirou o lençol da mochila e se cobriu. Andou um pouco e tropeçou. Ouviu outra vez aquele barulho sinistro e percebeu que vinha do canto escuro. Tentou sair do lençol para se defender do possível rato que viria atacá-la, mas não conseguiu, o lençol era muito cumprido e ela acabou se enrolando nele. Desistiu de levantar e colocou a mão nos ouvidos, se preparando para o pior, sem gritar. Esperou alguns segundos e nada aconteceu. Agora com mais calma, conseguiu se levantar e seguiu tropeçando até o portão. O lençol embaçava sua visão e ela acabou batendo de cara no muro da lateral do quintal e caindo. Mas nada a faria desistir, tornou a se levantar e deu uma pequena erguida no lençol para ir na direção certa dessa vez. Continuou andando e tropeçando, e nada do portão chegar.
De repente, Maria ouviu o barulho novamente, seguido de um vulto passando em sua frente. Apertou as mãos contra os ouvidos e fechou bem os olhos para não sentir vontade de gritar. Levantou o lençol e viu. Lá estava ele, o tão temido rato do qual sua mãe falava. Maria se desvencilhou rapidamente do lençol e correu o mais rápido que pode em direção à porta. Subiu em um vaso de plantas e lá ficou esperando o rato ir embora. Tomando o cuidado de não fazer barulho.
Depois que o rato se foi, Maria abriu sua mochila novamente e tirou de lá seu bombom. Desembrulhou-o e jogou no canto escuro, para que o rato se distraísse enquanto conseguia alcançar o portão. Depois de jogar o doce, Maria correu como nunca em direção ao portão e quando estava à alguns centímetros da fechadura viu que o bombom havia sumido. “O rato já havia pegado? Será que agora ele estava ali perto? Que esperto e rápido ele era!” pensou ela, correu novamente para a porta de casa.
 Já estava quase desistindo quando lembrou que seu relógio digital também servia de lanterna. Agora sim ela conseguiria. Pegou o relógio e ativou a função lanterna. Imediatamente saiu de seu visor uma luzinha rosa e fraca, mas que já adiantaria para assustar o rato gigante.     Foi andando e apontando o relógio para todos os lados. Quando chegou perto do canto escuro apontou a luz para lá e, olhando para o portão, finalmente alcançou a fechadura.
Pronto, agora sim começaria a aventura de sua vida. Ela conheceria castelos, florestas, montanhas. Lutaria contra animais selvagens, se abrigaria em cavernas e escreveria postais para seus pais todos os dias.
Estava mergulhada nesses pensamentos quando percebeu que o portão não se abria. Estava trancado. Maria abaixou a cabeça, pegou o lençol agora sujo de terra e seguiu para dentro de casa arrastando-o. Abriu a porta, andou até as escadas com um olhar tristonho e chegou até seu quarto. Lá, olhou-se no espelho e quando se viu suada, descabelada e meio suja, sorriu para si mesma e correu até o armário. Pegou um pequeno diário que havia ganhado assim que aprendeu a escrever, e começou a relatar sobre o seu dia:
“Querido diário, hoje viajei até uma floresta muito perigosa e escura, onde viviam monstruosos ratos gigantes, mas eu não fiquei com medo nem nada porque levei as minhas armas mais modernas pra enfrentar eles...”
E após o relato de sua viagem, Maria dormiu de cansaço. Seus pais, quando foram chamá-la para o jantar, a viram dormindo com o diário entre os braços, e por um momento se pegaram um tanto curiosos para descobrir quantas cansativas aventuras a mais a pequena aventureira havia vivido naquele dia.

- Ana Silva.

Manhã de domingo

Máxima de 24°, céu parcialmente encoberto ...
É a primeira coisa que meus ouvidos conseguem captar antes mesmo dos meus sentidos voltarem à tona, antes mesmo da minha retina chocar-se com a luz do dia, fazendo com que automaticamente eu abrisse a boca e espremesse os olhos antes de ter a ideia de esfregar o rosto com as mãos e logo após bocejar gostosamente como sinal de ' Bom dia, Dia! '. O som vinha da minha TV que passou a madrugada ligada, pra variar. A moça ruiva bonita dava as informações do tempo, e foi ela sair do quadro para eu desligar a telinha e preguiçar mais cinco minutos na cama. Tudo certo, até que olhei por lado e vi que já passavam das 9h15. Estava mais do que atrasado pro trabalho! Levantei num pulo e me dei conta de que era domingo. Ufa! Já estava de pé, e deitar novamente seria coisa de gente estúpida, coisa que nunca mais quero ser. Ao lembrar de já ter sido estúpido uma vez na vida, fui surpreendido pelo cheiro dela que estava em mim, na minha cama, na minha casa... Fiquei perturbado. Procurei pela casa inteira e nenhum sinal da existência dela a não ser pelas muitas fotografias espalhadas.
Por que depois de tanto tempo senti-la ainda me deixa sem rumo?
Na última vez que nos falamos, ela estava fazendo uma força enorme para não chorar. Percebi isso pela pressa que demonstrava ter. Geralmente tudo podia esperar, todos podiam esperar, menos eu. Seus olhos não se deslocaram dos meus em nenhum momento e isso me fazia um rato, pois eu fugia como se estivesse sendo invadido. Fugia por não saber dar a resposta que ela queria que eu desse, a verdadeira. Dei tantas e tantas voltas para tentar formular a melhor resposta, mas acabei optando por um ‘A gente não tem nada a ver‘. Desse momento em diante carrego o título de ‘O homem mais idiota do mundo’. Idiota por ter mentido, idiota por ter sido fraco, por tê-la deixado e por tê-la perdido.
“Depois de tanto tempo você vem me dizer que não temos nada a ver? Eu ontem não era o seu maior amor? Olha, eu não esperava uma atitude dessas vindo de você...” Escutei com vontade de sair correndo, pra não me arrepender mais do que falei. Sempre fui forte e decidido longe da dela, mas ao sentir o calor do seu corpo e ao encontrar seus olhos, eu perdia a noção e vivia o que ela tinha a me oferecer...
Ela não acreditou na minha desculpa imbecil, me desejou coisas lindas, que eu obviamente nunca mereci, e saiu sem olhar para trás. Eu via o amor da minha vida indo embora, sabia que nunca encontraria ninguém no mundo que fosse como ela, mas estava imerso à estupidez chamada orgulho e mesmo já arrependido, não fui atrás dela, não me humilhei e lhe pedi perdão até que fosse perdoado. Eu não disse que a amava e nem reconheci que sem ela, eu voltaria a ser tudo o que eu não queria para mim...
Ela nunca mais me procurou, está cada dia mais linda e vem crescendo como pessoa e profissional de uma forma que conseguiu surpreender até a mim, que sempre soube o quão maravilhosa ela é, apesar de não tê-la aproveitado.
Hoje, se eu pudesse voltar no tempo, iria atrás dela, a tomaria em meus braços e não largaria nunca mais... Confesso que estou a observá-la de longe, pergunto por ela, vou a lugares que ela frequenta...
Talvez por isso, hoje eu não tenha tido um sono tão tranqüilo e tenha lembrado dessa história toda, aliás, hoje e todos os dias desde aquela tarde de domingo, que eu dirigi à caminho contrário da minha própria sorte. E eu continuo a viver à sombra dela.

- Camille Ramos.

Vento do norte

Quando vier o vento triste da solidão, sorria e aponte para o norte. Ventos são desagradáveis ao norte, ele vai preferir ficar e te aquecer. Onde mais poderia encontrar companhia se não com uma ventania? Teme não conhecer o medo que te aflige, mas não tema não conhecer o amor que te persegue. Seja valente e dedicado, frio ou exagerado. Teu peito denomina o que sentir e quem abraçar... Quem amar e quem deixar. Abrace a brisa noturna e tente não se apaixonar.

- Leonardo Medeiros.

Título

Há um problema em viver um sonho: mais cedo ou mais tarde temos que acordar. Só há um caminho para o sono eterno e nele não há sonho, não há mais vida.
Eu acordei do meu sonho, tão real, eu sei, e dei de cara com a vida sobrevoando meus olhos, me sorrindo quase como quem pergunta: "Gostou?". Desde então tenho andado em um campo minado: tudo a minha volta parece que, a qualquer momento, vai explodir meu coração.
Eu não sei de onde podem vir as armadilhas, de onde virão as lembranças que desferem seus golpes contra mim. Pode estar em qualquer lugar. Qualquer música. Qualquer palavra, flor, óculos, ônibus, lençol, fotografia, silhueta, pelo, cerveja, hábito, comida, incenso, tênis, barba, data.
Não lembro todas as coisas que me lembram você, mas elas lembram de aparecer (pra mim) pra eu não (te) esquecer.
(E por mim, tudo bem que esteja assim. Que seja assim. Machuca, mas eu sorrio.)
Talvez eu só precise contar as horas intermináveis pro dia passar, pra noite, sorrateira, chegar, pra fechar os olhos pra te ver, voltar a sonhar. Só que dessa vez um sonho não-real e com hora certa pra acabar. Talvez eu precise torcer pras horas serem intermináveis nessas horas. E pra ter fôlego ao acordar.

- Débora Fonseca.

Pouco

O homem que não ama
É oco
Como coco sem água
Como casa de joão de barro
Como as esperanças em que me agarro
Como um peito repleto de mágoa
O homem que não ama
É louco
Como uma mãe que perde um filho
Como um quarta manicomial
Como o abastado que perde o real
Como um trem em descarrilho
O homem que não ama
É solto
É oco, é louco
É só, é morto
É livre, mas é pouco!

- João Azevedo.

domingo, 22 de setembro de 2013

Saudade

Eram sete da noite, eu olhava com apreensão pelo vidro da janela fechada, à espera do aparecimento dela. O quarto estava arrumado, tudo no seu lugar. Os lençóis da cama de casal bem esticados, a penteadeira organizada, o porta-retrato virado. Tudo no seu lugar. Então resolvi sair da janela e dar uma última olhada no espelho. Tudo certo. Cabelos penteados, pescoço perfumado, relógio no pulso, casaco nas mãos. Eu estava pronto. Voltei para a janela e, como em um passe de mágica, ela já estava ali, a poucos metros da porta da minha casa. Seu corpo pequeno e moreno, dentro de um vestido vermelho, com um sutil rebolado e um olhar incendiário, andando em direção à campainha.
Desci as escadas contando os degraus para não parecer desesperado. Parei. Precisava ver como as crianças estavam, mas a campainha tocou. Desisti de subir até o quarto dos gêmeos e corri até a porta. Abri, e lá estava ela. Linda. Esqueci das crianças. Dei as últimas recomendações à babá e peguei a chave do carro. Segurei com receio as mãos frias e frágeis da belíssima morena que me esperava na porta. Perguntei se podíamos ir, ela fez que sim com a cabeça e comentou que, apesar da ameaça de chuva, a noite estava linda. Eu não lembrava mais o que deveria dizer, há muitos anos não tinha um encontro.  O que faço agora? Porque não tenho um plano? Melhor voltar e ver como meus filhos estão, pensei.  Diante do silêncio constrangedor, ela resolveu sugerir que entrássemos logo no carro.
Resolvi levá-la para comer em um restaurante ali perto e quem sabe durante o jantar eu lembrasse o que fazer.  Não lembrei. Passei todo o tempo a ouvindo falar de sua vida, seus planos e seus afazeres.
Comecei a olhar em volta me sentindo entediado.  Em minha busca por algo interessante que me distraísse enquanto ouvia o monólogo da linda mulher de vermelho à minha frente, vi um casal sentado mais ao fundo, em uma mesa perto da parede.  Eles pareciam estar se divertindo muito. Gargalhavam alto enquanto conversavam. Às vezes paravam, olhavam-se profundamente e voltavam a conversar. Pareciam ter se esquecido da comida, tamanho era o entusiasmo com a conversa.  Lembraram-me dois jovens que há muito tempo eu não via. Ambos aparentavam estar no auge de seus vinte anos, com seus sorrisos marotos, seus cortes modernos, suas calças jeans...
De repente, me lembrei do que deveria fazer e falar em um encontro. Eu sempre soube o que fazer. Sempre foi fácil pra mim. Porque não era mais? Mesmo lembrando, não senti vontade de fazer e nem falar nada. Só queria continuar ali, olhando o casal feliz que me era tão familiar.
Subi um pouco o olhar e reparei em um detalhe roxo pintado na parede, bem ao lado da janela acima da mesa do casal que eu observava de modo sorrateiro. O desenho parecia ter sido feito com um marca-texto e tinha um formato facilmente reconhecível. Será? Não poderia ser. Depois de cinco anos, aquele rabisco pequeno, em forma de coração, continuava ali?
Nesse momento minha mente começou a bombardear à minha frente lembranças de alguns anos atrás, quando, em uma noite quente e chuvosa, dois jovens sentados naquela mesma mesa, ao pé daquela mesma janela, conversavam e se olhavam profundamente, enquanto a comida esfriava e o tempo passava mais rápido. Éramos eu e ela novamente, e ela estava radiante, como na foto do porta-retrato azulado de cima da penteadeira. Eu não poderia ter me esquecido daquela noite. Algo dentro de mim se aqueceu. Senti uma imensa vontade de sorrir quando me lembrei do momento em que, no meio da conversa, resolvi rabiscar a parede do restaurante para que nunca esquecêssemos aquela data. Um jovem vândalo, diriam. Mas aquele momento se tornou único com aquele ato. E aquela jovem mulher que estava ao meu lado, rindo do meu vandalismo, também havia se tornado única com o tempo.
Estava eu perdido nessas lembranças quando percebi que a linda moça de vermelho tinha parado de falar e me olhava de um jeito decepcionado. Mais uma vez eu não sabia o que dizer. Será que ela percebeu pelo meu olhar que eu estava pensando em outra? Eu esperava que não. Ela apenas sugeriu que pedíssemos a conta. Eu concordei. Na saída do restaurante dei uma última olhada no coração feito de marca-texto. E assumo que eu ainda não estava preparado para aquilo.
Voltamos ao carro e a levei até sua casa. Ao chegar a casa, subi com cuidado as escadas, para não fazer barulho e acordar os gêmeos. Abri lentamente a porta do quarto e lá estavam eles, dormindo. Eram dois meninos tão grandes, nem pareciam ter apenas quatro anos de vida. Dei-lhes um beijo na testa e pensei em como eram fortes por conseguirem aguentar a saudade dela. Levantei-me ainda olhando para eles. Depois fui até a porta e a fechei lentamente.
Segui até o meu quarto e, quando entrei, olhei para cima da penteadeira. Lá estava ele, virado para a parede como se estivesse de castigo. Peguei-o com cuidado para não quebrá-lo e o abracei. O aperto no meu peito intensificou-se. Deitei na cama sem nem ao menos tirar os sapatos e fiquei ali, naquela posição, durante muito tempo, olhando para a foto dela no pequeno porta-retrato azulado.

- Ana Silva.

Cansada do novo

Então ela decide que agora tudo será diferente
mais seus planos ainda a assombram
e ela sai para esquecer, mas são apenas pessoas
pessoas sem história marcada na sua,
Algumas que passaram mas são de lua,
almas que se afastam, a cada mordida de dor
e não tem vontade de conhecer o novo
o novo que ja vem com defeito
o novo que não entenderia sua profundidade
as almas da rua que parecem vazias e entorpecidas
mas talvez sejam tão profundas como um buraco negro
Tão fundo que não vale a pena cair.
Ai ela decide não sair, mas e ai, como seria?
o aleatório não a encontraria, se ela se escodesse na estática
E assim, vítima da estatística matemática
sai novamente, mas nenhum olhar,
nenhum corpo, nenhum toque
faz seu coração bater mais forte
Então ela decide, novamente ficar.

- Hanna Inaiah

Perdição

Sou perdido e me perco ainda mais. Me perco nos olhos, nos corpos e nos rostos. Me perco no caminho, me perco por ai. Me perco no teu sorriso, na tua boca aberta ao rir. Me perco nos teus lábios que sempre me imagino tocar. Me perco nos teus gestos e trejeitos, nas tuas roupas e em todo resto. Você é um chamariz pra perdição. A armadilha perfeita pra alguém se perder e se entregar a loucura. Mas loucura maior seria não se perder em você. Me perco e gosto de perder. Perder pra você não é derrota, é apenas vontade de viver. Só não me permito perder pro teu coração. Esse pode machucar, deixar cicatriz. Cicatrizes essas que nem teu beijo será capaz de curar. Teu coração eu deixo quieto, não brinco. Só entro no jogo quando aprender que por ele não perco, mas que por ele eu vivo.

- Marcelo Caldas.

Sobre o "Andorinhas na gaveta"

Muito mais que um blog criado para um disciplina da faculdade. Aqui reunirei muitos amigos e algumas boas histórias. Um pouco de mim e de todos nós.