quinta-feira, 26 de setembro de 2013

Mudança

Olho, mas não vejo, algo aconteceu, está tudo diferente, as cinzas estão no ar e um passado volta à tona a partir da falta de visibilidade humana. Quatro anos, e vidas transformadas, esse foi o saldo de uma insanidade positiva, aquela que deixou bons frutos.
E agora? Não tem pra onde o olhar fugir, mas nem estava fugindo, um novo momento já havia surgido, e ele estava em novos horizontes. Mas estar em outro momento não quer dizer que a importância de certas passagens será apagada ou substituída por outras, cada uma lá, com seu grau de importância, mesmo que seja só para uma pessoa.
No fundo, pode ser percebido que aquela busca nem foi tão em vão assim, toda angústia, sofrimento, fez e sempre faz você aprender sobre algo, e ser diferente a partir desses aprendizados, contudo, essa é a grande graça da vida, aprender, aprender e aprender.
Um assobio, uma corrida, e uma jogada de chave às 6, nada será como antes, passou, e o que fica é uma lembrança dos tempos iniciais de quando tudo não se passava de uma eterna brincadeira.
Aliás, é assim que pode ser visto tudo isso, uma brincadeira que só um joga, participa e se esforça, no final, olha pra trás e vê que sempre esteve sozinho, e que os acontecimentos e sonhos eram efeitos de uma imaginação livre e sempre aberta que buscava a realização do impossível.
O tempo passou, o mundo mudou, a felicidade chegou e novos nomes surgiram nas vidas dessas pessoas, mas a marca de uma forte história, não se passa de uma tarde ensolarada de agosto de 2008. A sempre e eterna busca pelo ver, tocar, sentir e amar, são fatores fundamentais para a longevidade de uma história simples, que poderia durar horas, ou dias.
Desde apelidos até a verdadeira identidade, uma conexão lenta e uma descoberta mais aprofundada sobre uma pessoa desconhecida, e desde então, vários personagens entram para a história, e o desconhecido vira coisa passada. Tudo tem um sentido, uma razão de ser.
Histórias compartilhadas entre amigos, família, e suas verdades são divulgadas de uma de certa forma que não existem mais segredos, e todos já possuem uma visão critica sobre os acontecidos e pessoas que revelam que nada pode mudar, sempre será desse jeito.
Escritos, guardados, e palavras trocadas já ficaram velhas, e o assunto foi retomado. Certos acontecimentos têm esse poder, de ressurgir algo de uma maneira, pois mexeu na ferida, já fechada, mas mexeu... E no fim, percebe-se que nada estava sozinho, tudo era um grande contexto, mas agora tirando uma peça daquela grande engrenagem muda tudo, e mais um paradigma se quebra, e de repente, olho, mas não vejo, algo aconteceu, está tudo diferente.

- Rafael Gomes.

Pretérito imperfeito

Você foi a festa que eu cheguei atrasada e tive que sair antes do final. Você foi aquela música preferida que, trocando de rádio, só consegui ouvir a metade. Você foi o gole que se dá pro santo, brinde de amostra grátis, brinquedo emprestado. Você foi o evento esperado que, prestes a acontecer, foi cancelado. Foi o faltar da luz no último capítulo da novela. Foi aquela peça da vitrine que nunca tinha o meu tamanho.
Você foi o enviar da mensagem que eu não terminei de digitar, no erro, na pressa, no desespero.
Foi maré baixa. Foi chuva na viagem de férias.
Você foi os ingressos esgotados no último dia de apresentação do espetáculo (mas também fechou as cortinas antes mesmo dele começar). Foi versão sertaneja de jukebox pra sua música preferida do Metallica. Você foi o chute incerto com múltiplas escolhas, desvio-padrão. Feriado no domingo, dublê em filme de ação.
Você foi a entrada no segundo tempo da partida (e deu o apito final). Você foi criança rebelde no Jogo da Vida (e derrubou os pinos fechando o tabuleiro). Foi equação com resultado impossível. Você foi o entregar os pontos próximo à linha de chegada.
Você
(se)
foi.

- Débora Fonseca.

Espelho

Admirava por ventura meu rosto envolto por moldura.
Seria mel azedo o que eu provara? Seria eu criatura boa e educada?
Voltei-me às cortinas que envolviam as janelas, correria se pudesse.
Meu reflexo me envolvia como um lobo às suas ovelhas,
Seria eu juiz de minhas próprias ações? Seria eu verme traiçoeiro?
Caberia a virtude de meu olhar, julgar a mim mesmo e aos demais?
Seria pobre se o fizesse, seria rico se o mantivesse.
Regulamento então o seguinte sacrifício, serei o nobre!
Perderei meu vício, de me manter prisioneiro, forasteiro.

- Leonardo Medeiros.

Ensaio

A gente se acostuma com os costumes. Acostuma a levantar, ir ao banheiro, escovar os dentes e abrir as janelas para um novo dia tão igual. E, de repente, num repente desses que a vida costuma nos dar, as coisas saem dos eixos, como se o tempo se encarregasse de mudar a mobília da nossa casa de lugar sem a nossa permissão; como aquele caderno antigo que há anos ficava no mesmo lugar e que a nova empregada se achou no direito de esconder em um outro canto. Um ultraje essa vida de mudanças: as pessoas se vão assim, no vento, e uma dessas brisas frias de primavera te tirou para dançar.
Desde então, não durmo. Não ouço Engenheiros do Hawaii. Não levanto a tábua da privada e nem lavo as mãos. Não vejo Two and a Half man. Passei a odiar os clipes da MTV. Não leio a parte de economia do jornal. Nem compro mais jornal. Não tomo mais suco no jantar. Não aponto as estrelas no céu, entre o vão da cortina cor de vinho. Não vou ao cinema. Não escrevo poemas enquanto deveria estar projetando casas. Não canto no chuveiro. Não uso aquele perfume que tem cheiro de chuva. Ah, você nem sabe o quanto tem chovido aqui dentro de mim, o quanto eu tento secar a cada segundo. Ao lado, vejo uma grande inundação, um dilúvio, uma grande tempestade de vida nova. E que porra de vida é essa? – Eu to bem – decorei essa frase. Nunca a usei tanto. Nunca soube de tanta gente se importando comigo, feito moscas por cima dos restos de comida na mesa. Melhor dizendo, dos farelos no chão, pisoteados. – Eu to bem – e por dentro uma retórica parecia querer se externar; tomava um soco na cara e voltava a dormir dentro de mim. Maldita sinceridade, quando, na verdade, eu precisava parecer estar bem.
Ensaiei o sorriso no espelho. O discurso de bem resolvido. Fiz a barba.
Desde então, me tornei um homem de um conto qualquer, contado por qualquer escritora jovem, cheia de ideias. Um homem ator, uma vida de mentira. Uma falsa comédia. Trágica.
Ela tinha tinta vermelha na ponta dos cabelos. Era uma ex revolucionária, que encareteou com o tempo. Já não fumava ou bebia. Já não ria das minhas histórias da época de conselho estudantil. As coisas foram perdendo a cor, e eu corria atrás delas com um pincel enorme. Mas a tinta era preta. Eu estava estragando tudo.
Desde então, não gosto das cores. Saio todos os dias vestindo cáqui ou bege e, não sei bem o motivo, isso faz eu me sentir um pouco mais da multidão. Um camaleão no meio da sujeira, da correria, da massa infértil, dos sinais vermelhos e das buzinas; de toda a falta de amor das ruas. Já não acredito em amor. Não acredito em mim, nem nela. Só tenho acreditado nas mentiras que ensaiei no espelho – Eu to bem – ninguém discordava.
Ando escrevendo cartas e fazendo menos projetos de casas. Endereço-te todas elas, só estou esperando você vir buscá-las na minha gaveta de cabeceira. Todas tem nosso amor descrito. Meu ódio descrito. Meu arrependimento gritando. Meus ensaios decorados. Minha voz te clamando pra voltar. A senha do meu cartão de crédito. O número dos teus sapatos. Tua mexa de cabelo vermelho, desbotada. Tuas pulseiras douradas. Tua paciência que eu desperdicei. Ah, como eu queria saber teu endereço, teu número de celular. Queria saber se você está bem, se tem tomado tuas pílulas de açúcar, se ainda tem medo de andar de metrô. Queria saber se sua voz ainda falha de manhã, se você ainda espirra ao olhar para o sol. Daria tudo para saber se você ainda quer ter filhos. Queria te dizer que eles sempre estiveram nos meus planos. Você não sabe, mas acabo de fumar meu último cigarro e perdi as contas de quantas vezes respirei. Andei contando as respirações, tive um pouco de dificuldade no começo, mas não resolvi parar por isso. Resolvi que vou viver, por mais que isso signifique te ver em cada esquina, te procurar nas curvas de outras mulheres. Te ver comentando sobre economia enquanto lê o jornal. Te ver ligando a TV nos clipes da MTV apenas para zombar deles. De te lembrar rindo de Two and a Half man e de me implorar para irmos ao cinema. De fazer o melhor suco no jantar. De te ajudar a escolher as estrelas mais bonitas. De te ouvir xingar ao ver a tábua da privada abaixada. De te ouvir rindo de mim enquanto eu cantava no chuveiro. Lembrar-te da sua reação ao sentir meu perfume, dizendo sempre que ele te lembrava o cheiro da chuva. Vou catar estas migalhas com o tempo. Vou desatar este nó entre passado e presente. Mas, por que diabos eu só consigo lembrar de mim nas coisas que havia você? Por enquanto o peito vai e volta. Se vai a fumaça da minha última tragada, no meu último cigarro.
É – eu to bem.

- Mariana Stofel.

Amores urbanos

Estava ali, dentro daquele quarto calado e caótico, eu, calado e caótico, vendo a noite ruir. Sentei-me na beira da cama como se meus pés não tocassem o chão, mas sim as águas mansas de um mar construído por mim, era noite de lua nova e não havia sequer um maço de cigarros no meu criado mudo.
Ela iria embora depois de longos anos de espera. E ela não era a noite.
Liguei o rádio e esperei que tocasse algum blues que não me lembrasse quem fui. Eu que corri por tanto tempo em busca de me livrar de mim mesmo, como se a minha velocidade corporal deixasse minha alma para trás. E quantas vezes eu nem quis ter alma? E quantas vezes como essa agora eu me pergunto: Quando voltará a minha alma, se é que tenho uma?
São duas da manhã, acabo de ver o relógio. A cidade está toda em movimentos rotativos – resultado da vodka que ando bebendo – na verdade os amores urbanos estão todos lá fora se amando lentamente antes que se acabem, porque eles acabam e não é justo que eles não saibam disso.
Eu olhava pela janela e quando ouvi um passo estranho e uma respiração ofegante perto dos meus ombros. Ela não era a noite. Ela tinha um cheiro característico e único, que eu sentiria aqui ou em Roma, aqui ou no inferno. Pegou duas malas cheias de mágoas e mentiras e me fez carregar até a porta, sem olhar em meu rosto. Ao tocar em seu antebraço, senti sua repulsa e o seu cheiro veio parar dentro de mim como a fumaça do meu cigarro. Ela me matava aos poucos e nem sabia.
Então eu levei-a até o elevador e esperei aqueles dois minutos mais longos que se pode haver. Falei – espero que faça boa viagem – ouvi apenasjá uma respiração decepcionada. Eu não possuía vocabulário algum para descrever esse momento. Vi um táxi convencional amarelo levar meu sonho para qualquer hotel dessa cidade.
Agora são quatro da manhã. Ray Charles toca uma canção que eu não me lembro o nome, mas que me lembra você em cada nota. Lá fora amores urbanos começam, o mundo gira circulando e circulando como o relógio da minha parede tão cansado de me ver vigiá-lo, como se o girar dos ponteiros pudesse se inverter e fazer todo o tempo voltar, e te fizesse voltar junto com manhã passada, mas ainda é noite! E ela não era a noite.
Debrucei novamente na janela – já estava cansado de me manter sentado e inerte – fui ver estrelas. Olhei-as calmamente e por um momento perdi-me na noite, como um anjo. Ora, eu estava longe de ser um anjo, mas foi assim que eu me senti. Só não pude voar por pouco, de fato tive medo da altura da minha janela e o medo sempre foi uma merda na minha vida. Voltando às estrelas... Bom, lá estavam elas, sós e unidas como um bando de ovelhas guiadas por um pastor. As estrelas estavam lá guiadas por, sei lá... Deus! Pela primeira vez eu senti a sua paz dentro da minha veia aorta e tudo aquilo repassava ao meu corpo um desejo de não mais sofrer.
Eram cinco da manhã, e nessa estação o sol aparece mais cedo. Mas ainda era noite e ela não era a noite. Então eu não resisti a mais um gole e deitei-me com as janelas abertas para observar um vento matinal que já podia levar as minhas cortinas brancas até a outra parede do quarto.
Desliguei o rádio e, de repente, senti uma desesperada vontade de olhar a janela novamente.
Lá estava ele – grande e poderoso sol – e eu, tão branco, não o notava mais por tamanho egocentrismo, o meu brilho me bastava e meu peso me ancorou todo esse tempo, mas pela primeira vez depois dessas horas que ela se foi eu me senti livre, leve.
Descobri ao olhar o céu que a noite se vai como ela, mas que a vida é sentida em cada raio de sol e, quando se vive, no mais verdadeiro e amplo sentido que esse verbo possa ter, a noite vem para trazer o descanso, e quem sabe... Me trará ela! Esse meu pensamento coloriu em minha mente a idéia de que a vida é continuidade, e eu já não tinha mais fígado ou ilusões para lapidar esses “pra sempres” que nunca chegam.
Mas, de fato consumado, perante qualquer pieguice de infinito, ela sempre será minha noite, embora já não mais em carinhos, apenas em sonhos.

- Mariana Stofel.

As rosas não dormem

Antes de todo amanhecer eu me encontro, vestida de estrelas, com os olhos fechados ao ponto de que tudo posso ver, até eu mesma. Dos sonhos partem toda a parte do horizonte que eu caço, cato, busco como se eu pudesse tocá-lo com as mãos. A verdade é que não há nada mais terrível que o horizonte, porque quanto mais você se aproxima, mais ele se afasta. É duro ser um horizonte pra si mesma.
Desta forma eu encontro, numa série de palavras, o meu contraponto. Ao mesmo tempo em que eu escrevo tudo com essas mãos ainda tão frias, eu tento apagar coisas tão marcadas nas linhas que se fixaram ao ponto de serem intocadas, ocupando espaço demais em meio às outras palavras. É um negrito tão gritante, que me tortura em saber que um dia grifei essas palavras com tanta vontade de que elas fossem eternizadas.
Então você se encontra numa noite como essas procurando sinônimos para continuar viva. Você olha em cada esquina desses becos sem saída que são seus dias e se esquiva dos fatos como um morcego da luz. Não há descanso, meu bem, mas às vezes os dias ninam as noites.
Como se não bastasse a insônia, ainda preciso montar esquemas de esquecimento e arquitetá-los para serem infalíveis. É uma luta diária, é tão duro como ver brotar em você um espinho, perfurando sua carne, mas te fazendo um pouco menos inofensiva ao toque dos outros. Então eu me encontro segura ao ponto de não mais esperar que as dores e os sonhos resolvam entrar em comum acordo. Dessa forma eu descanso, em alerta, eu nunca durmo dentro de mim, não é seguro. Há um mar profundo nos meus sentidos, há uma areia movediça nas tuas defesas, haverá sempre uma linha entre nós que, ao ponto que nos separa, só nos une. Só não espero nenhum toque porque eu sei tanto sobre medos e jogos que sempre dou um jeito de me esquivar. É duro aceitar que você afasta as coisas. É inútil saber procurar sonhos dentro de outras pessoas, porque eles se vingam de nós. Não há vingança pior que a de um sonho não realizado.
Por ora, o importante é não esperar, planejar, arquitetar. O mais bonito dos sonhos é o fato de eles serem involuntários e espontâneos. O mais eterno de um sonho é o fato dele acabar, é a memória de quando se acorda e se lembra intactamente daquilo que só o travesseiro pode presenciar. O duro dos sonhos é que se precisa dormir para encontrá-los.
Ah, e esse café me dá insônia.

- Mariana Stofel.

Invisível

O teu eu é como o meu, mas sem voz. Olhos que brilham no escuro de uma imaginação abarrotada de lembranças. Foi um grande prazer e sempre será, meu amigo.
O teu sorriso é como o meu, mas congelado. Vive naquela tela estática, irreal e nada lúcida. Você se tornou parte dessa loucura incompleta, desse jogo sem peças, mas com xeque-mate cada vez mais próximo. Eu não sei muito bem em que momento de toda essa história você derrubou a minha pose de rainha com seu cavalo bem-humorado e gentil.
Eu não posso te enxergar, mas te vejo. Que irreal desejo é esse que me assombra? Quando meus olhos se fecham e aquela única brecha de luz se acende, eu sei, é você em qualquer parte do mundo, em qualquer cama que eu não sei a temperatura, com qualquer roupa que eu não sei a cor. É você em cada mania que eu desconheço, em cada rotina que eu me enfio como uma íntima estranha.
Eu não posso te escutar, mas te ouço. E que voz é essa que ecoa de um passado já tão distante? As palavras que você diz sorriem para o meu tímido silêncio. A gente encontrou esse modo torto de se entender pelas mãos. E sorrir com as mãos vai ser sempre a nossa maior voz.
Eu amo as suas visitas, mas talvez não devesse abrir as portas da minha casa dessa forma e te convidar para entrar, para visitar os meus armários e te servir as sobras de uma refeição já feita. Você merecia não menos que um jantar à luz de velas, com um bom abraço de sobremesa. O que eu posso te oferecer é tão pouco perto do que eu possuo guardado no fundo do meu mais íntimo pensamento.
Redescobri o tom, mas não redesenhei as metas. Você é feito desenho em nuvem: talvez seja só coisa-da-minha-cabeça-ociosa. A verdade é que, desde você, sou eu de novo. Com aquele perigoso brilho latente nos olhos; farol alto demais nessa estrada que já parecia tão iluminada. O problema é que, desde você, já não sou mais eu. Não aquela pessoa centrada e objetiva. Ando cheia de subjetividades tenebrosas, ilegais. Sou risco o tempo inteiro, inconstância. Ora certeza invicta e eterna, ora efemeridade tentadora.

- Mariana Stofel.